Ponto da situação em Portugal
novembro 30, 2010
O panorama é negro. Passo a transcrever:
Medidas do OE 2011 são ataque violento que pode acabar com a escola inclusiva
No próximo dia 3 de Dezembro, comemora-se o Dia Internacional das Pessoas com Deficiência, data que procura evocar os complexos problemas que vivem, as pessoas com deficiência e a lenta marcha da humanidade na sua luta pela conquista de direitos humanos fundamentais reconhecidos, hoje, a essas pessoas, entre os quais se conta o direito a uma educação de qualidade e inclusiva.
O Governo Português, catorze anos após a proclamação pela UNESCO da Declaração de Salamanca (1994), que contem as bases filosóficas, os princípios e objectivos de uma escola inclusiva, publicou o Decreto-Lei nº 3/2008, de 7 de Janeiro, que viria instituir, no sistema educativo português uma nova organização da Educação Especial, responsável por um enorme retrocesso na educação das crianças e dos jovens com necessidades educativas especiais: Primeiro, porque restringe os apoios especializados aos alunos com necessidades educativas especiais de carácter prolongado, afastando da Educação Especial milhares de alunos até ali abrangidos por esses apoios; Segundo, porque institui uma estrutura segregada (e segregadora), dentro do espaço escolar (as escolas de referência e as unidades especializadas ou de ensino estruturado).
O Orçamento de Estado para 2011 vem agravar este quadro, ao prever uma enorme redução das verbas destinadas à educação (803 M€), com incidência na redução de recursos educativos (docentes, assistentes operacionais e técnicos), desinvestimento na formação de pessoal, redução de apoios sociais (abono de família, abono complementar por deficiência, acção social escolar), corte do Estudo Acompanhado, etc.
Nos primeiros meses de 2010, a FENPROF procedeu a um levantamento das condições de funcionamento da Educação Especial nas escolas/agrupamentos. Dos dados obtidos, foi possível elaborar um estudo, que permitiu apurar os traços fundamentais do quadro negro da Educação Especial em Portugal, dois anos após a entrada em vigor do Decreto-Lei nº 3/2008 e que, porque actuais, aqui se reproduzem, em síntese:
- Em apenas dois anos (2008-2010), o ME conseguiu afastar da Educação Especial mais de 20.000 alunos com necessidades educativas especiais;
- Faltam milhares de docentes de Educação Especial nos quadros das escolas/agrupamentos;
- Perante esta escassez de professores, nos quadros de escolas/agrupamentos, valeu tudo para colmatar esta falha:
- recurso a contratados;
- colocação em “oferta de escola”;
- colocação por convite.
- Muitos dos colocados não têm qualquer formação ou experiência nesta área e alguns encontram-se no início da sua vida profissional.
- Faltam nas escolas/agrupamentos centenas e centenas de outros profissionais e técnicos especializados com destaque para os psicólogos, assistentes operacionais e terapeutas.
Tentando desvalorizar e sobretudo descredibilizar o estudo da FENPROF, o Ministério da Educação encomendou um outro estudo de impacto à aplicação do Decreto-Lei nº 3/2008 e, em 2 de Julho de 2010, fez publicar uma “síntese da apresentação dos resultados da avaliação externa da implementação do Decreto-Lei nº 3/2008”, onde se pode ler que:
“ (1) As equipas estão focadas nas características funcionais mais do que nas deficiências dos alunos;
(2) A CIF trouxe um olhar intencional acerca dos Factores Ambientais, contudo ainda há uma reduzida identificação de barreiras;
(3) A avaliação especializada tem implicado o recurso a fontes diversificadas de informação e o uso de métodos informais de avaliação mais consentâneos com o modelo biopsicossocial;
(4) As escolas e as equipas estão a usar a CIF e respectiva linguagem no processo de identificação das necessidades educativas dos alunos para a Educação Especial;
(5) As crianças elegíveis apresentam uma maior severidade nas suas características funcionais, o que é compatível com o referido Decreto-Lei nº 3/2008;
(6) Para perfil de funcionalidade dos alunos com a medida CEI ainda contribuem mais os aspectos de aprendizagem e aplicação do conhecimento (d1), do que aqueles relacionados com os auto-cuidados (d5), com a vida doméstica (d6), com as interacções interpessoais básicas (d7), com áreas principais da vida (d8) ou vida comunitária (d9).”
Iniciado o ano lectivo de 2010/2011 e, após diversos contactos com as escolas/agrupamentos, a FENPROF constata que, relativamente ao levantamento/estudo de 2010, a realidade da Educação Especial nas escolas/agrupamentos, não só não melhorou, como viu acentuarem-se todos os traços negativos detectados naquele estudo, o que põe por terra a propaganda, certamente bem paga, do Governo, como mostra o carácter estrutural da “crise” da escola inclusiva e a deliberada intenção do ME em acabar com as suas bases fundamentais, pondo-a em risco:
• Continuam a faltar milhares de docentes de Educação Especial nos quadros das escolas/agrupamentos, situação, aliás, agravada pela actual prática da Administração Educativa de não substituir docentes de Educação Especial ausentes por longos períodos (destacamentos, gozo de licenças de maternidade ou paternidade, doenças prolongadas, etc.);
• Os alunos com necessidades educativas especiais apoiados pelos docentes ausentes são redistribuídos, em muitos casos, pelos restantes docentes de Educação Especial da escola/agrupamento, fazendo elevar o ratio professor/aluno e, em consequência, diminuir o tempo de apoio a cada um e a qualidade da resposta educativa. Note-se, ainda, que em grande parte dos casos esses apoios são prestados em várias escolas, diminuindo ainda mais a qualidade e o tempo do apoio. Há, de facto, muitas situações em que os alunos com NEE têm uma hora (e menos) de apoio por semana.
Exemplos:
O Agrupamento de Escolas Pêro da Covilhã, não substituiu um docente a faltar por doença (período previsível de três meses), mantendo, sem apoio, quatro alunos com problemas muito graves. O Director recebeu instruções para que os alunos sejam “divididos” pelos restantes professores, ficando a situação muito complicada para todos.
No Agrupamento de Escolas Paul e Entre Ribeiras, há três professores para 21 alunos com NEE distribuídos por seis escolas uma das quais a 30 km de distância da Escola Sede.
No Agrupamento de Escolas Oliveirinha (Aveiro), quatro professores apoiam 50 alunos com NEE.
O Agrupamento de Escolas Dr. Azeredo Perdigão em Viseu, precisa de mais docentes de educação especial que o ME se recusa a colocar.
O Agrupamento de Escolas de Sernancelhe tem 26 alunos com NEE distribuídos por cinco escolas, apoiados apenas por dois professores. Os pais destes alunos já reclamaram a colocação de mais professores de educação especial. O ME recusou-se a colocar mais docentes. O trabalho de apoio é distribuído por estes dois docentes que se deslocam às cinco escolas com prejuízo da qualidade do apoio.
No distrito de Aveiro, foram detectadas várias situações em que professores do apoio educativo, que deviam apoiar alunos com dificuldades de aprendizagem são mantidos em exclusividade de funções de substituição.
Na Figueira da Foz, a Escola EB 1 do Serrado tem menos um docente do que no ano passado para o mesmo número de alunos, alguns dos quais a frequentar uma unidade de ensino estruturado para autistas. Apesar da movimentação dos pais, a DREC tem-se recusado a colocar mais docentes.
No Agrupamento de Escolas de Almeida, num universo de 600 alunos, há um só docente de educação especial.
Na maior parte das escolas com unidades especializadas da multideficiência da área da DREN, há falta de docentes e auxiliares.
No Agrupamento de Escolas de Colos (distrito de Beja) não há nenhum professor especializado no quadro, existindo somente 1 professor especializado (contratado) a fazer trabalho na sede do agrupamento. Nas várias escolas trabalha 1 outro docente contratado por oferta de escola, sem especialização, para colmatar as muitas necessidades de EE.
Nos Agrupamentos de Escolas dos concelhos de Cantanhede, Arganil, Lousã e Coimbra, há falta de docentes especializados.
No Agrupamento de Escolas da Batalha (distrito de Leiria), que tem uma unidade de ensino estruturado para quatro alunos com perturbações do espectro do autismo, a DREC recusa-se a substituir duas docentes que se encontram ausentes, por destacamento e por licença de maternidade.
No Agrupamento de Escolas D. Dinis (distrito de Leiria) uma aluna surda encontra-se numa turma normal sem intérprete de língua gestual portuguesa, completamente “perdida”.
• Faltam milhares de assistentes operacionais (ex-auxiliares de acção educativa), entretanto, em muitos casos, substituídos por tarefeiros pagos a 2,5 euros à hora, por um máximo de 4 horas diárias e por desempregados de longa duração (POC).
Exemplos:
Encontramos falta de assistentes operacionais (auxiliares de acção educativa) na maior parte dos agrupamentos com unidades especializadas, unidades de ensino estruturado e escolas de referência, em todas as regiões do país, incluindo situações de acompanhamento de alunos com problemas graves.
Em vários agrupamentos das áreas da DREA e DREAlg foi dada nota de uma grande carência de auxiliares de acção educativa, terapeutas da fala e psicólogos.
• Faltam centenas de técnicos especializados (psicólogos, terapeutas, fisioterapeutas, técnicos de Braille, técnicos de serviço social, técnicos de saúde, etc.);
Exemplos:
Os Agrupamentos de Escolas Pêro da Covilhã, Tortosendo, “A Lã e a Neve” e Paul e Entre Ribeiras (distrito de Castelo Branco), e a maior parte dos agrupamentos dos distritos de Lisboa e Setúbal, queixam-se da falta de psicólogos. O mesmo se passa em outras regiões do país. Aliás, segundo dados do Sindicato Nacional dos Psicólogos, o ratio de psicólogos no quadro das escolas/agrupamentos é de 1/3676 alunos. O mesmo sindicato refere a existência de casos de psicólogos com mais de 100 alunos com NEE, que acumulam com outras actividades, como, por exemplo, a orientação escolar.
O Agrupamento de Escolas do Tortosendo, para ultrapassar o problema da falta de técnicos, fez um protocolo com a empresa “Cinco Sentidos” de Mangualde custeado por verbas da Segurança Social. O Instituto de Segurança Social de Castelo Branco já anunciou que vai cortar esse apoio e propõe que estes alunos sejam encaminhados para o Centro de Saúde. O Centro de Saúde já respondeu não ter capacidade de resposta. Em causa está o trabalho de três terapeutas: uma da fala, uma de psicomotricidade e outra de estimulação cognitiva que davam apoio a 15 alunos.
Devido aos critérios da colocação de pessoal técnico (nos CRI – Centros de Recursos para a Inclusão), a precariedade é maior porque só se podem contratar técnicos para horários de 18 horas, que não podem acumular.
Por exemplo no Agrupamento de Escolas “A Lã e a Neve” trabalha uma terapeuta da fala que viu o seu horário reduzido do ano passado para este ano de 35 para 18 horas, o que é insuficiente.
Faltam diversos técnicos na área da DRELVT.
• Falta a formação contínua para os docentes na área da Educação Especial, porque a pouca formação disponibilizada pelo ME é dirigida para o PTE (Plano Tecnológico da Educação);
• Falta formação para os assistentes operacionais e tarefeiros, para lidar com os alunos com NEE, especialmente, os casos de maior complexidade;
• Diminuem os apoios da Acção Social Escolar;
Eliminação da majoração de 20% no 1º e 2º escalões de rendimentos do abono de família e eliminação dos 4º e 5º escalões. Congelamento das restantes prestações sociais, incluindo o abono complementar por deficiência.
• Falta de material técnico específico;
Exemplo:
O Agrupamento de Escolas Paul e Entre Ribeiras tem uma unidade de apoio à multideficiência com três alunos mas só dois a frequentam. A terceira criança, tem síndrome de Rett e desde Dezembro de 2009 que não vai à escola porque nesse mês foi operada à coluna e a mãe exige que haja transporte adequado às suas necessidades, que ainda não foi disponibilizado.
• Na estruturação das respostas de Educação Especial para os alunos com perturbações do espectro do autismo (unidades de ensino estruturado) ou com multideficiência ou surdocegueira congénita (unidades especializadas) vão-se consolidando climas de exclusão destes alunos, dentro da própria escola, por duas ordens de razões:
- Regra geral, os docentes de Educação Especial não são em número suficiente e, muitas vezes, não têm formação específica para acompanhar estes alunos, que requerem um trabalho mais individualizado;
- Na maior parte das vezes, a ida destes alunos a uma turma do regular, num determinado período de tempo, vai gerando resistências por parte do docente da turma (em muitos casos sem qualquer formação ou sensibilização nesta área e sujeito à pressão de uma avaliação de desempenho burocrática e injusta), e dos pais/encarregados de educação dos alunos da turma do regular, com a alegação de que estes alunos vêm perturbar o trabalho dos seus filhos/educandos ou o desempenho dos docentes, cada vez mais sujeitos às apertadas regras de uma avaliação desajustada.
• Constituíram-se turmas, incluindo alunos com NEE, com mais de 20 alunos ou com mais de 2 alunos com NEE.
Exemplo:
No Agrupamento de Escolas de Colos (distrito de Beja), há um menino autista que está numa turma de 17 alunos, incluindo mais dois com NEE (a turma tem os quatro anos de escolaridade). A DREA indeferiu o desdobramento da turma. Não tem nenhum professor especializado. Neste mesmo agrupamento há uma outra turma que, embora reduzida, tem três alunos com NEE. Praticamente, em todas as regiões do país há turmas de alunos com NEE que excedem os 20 alunos ou com mais de 2 alunos com NEE.
• Há docentes de EE cujas funções são desvirtuadas quer na organização dos horários (excessiva carga de componente lectiva, a velha confusão entre apoio da componente lectiva e outras actividades na componente não lectiva em que o docente de EE continua sempre a trabalhar com alunos), quer porque são chamados a fazer substituições de professores em falta em horário de trabalho com os seus alunos com NEE, deixando-os sem apoio nesses períodos.
• Intervenção Precoce: A grande maioria dos docentes nesta área não tem qualquer especialização o que tem reflexos negativos na qualidade da resposta às crianças e respectivas famílias. A IP é uma área que requer, pela sua especificidade, um trabalho pluridisciplinar em equipa. Ora, a prática mostra que por falta de orientações e recursos grande parte das equipas não funcionam e os docentes trabalham sozinhos com sérias repercussões no desenvolvimento destas crianças.
• Na constituição dos mega-agrupamentos de escolas muitos alunos com NEE foram deslocados de escola, as turmas foram reconstituídas, não houve processos de transição, os encarregados de educação não foram informados e os alunos viram-se confrontados com novos colegas e novos professores, perturbando o seu processo de inclusão.
Exemplo:
É o caso do Agrupamento de escolas de Mangualde onde alunos com trissomia 21 e multideficiência viveram este processo agravado pelo facto de a mudança de escola ter obrigado à elaboração de novos documentos para o CEI (Currículo Específico Individualizado).
Perante esta situação, a FENPROF:
- denuncia estas políticas educativas e exige a revogação do Decreto-lei nº 3/2008 e a sua substituição por uma nova organização da Educação Especial, a negociar com as associações sindicais;
- exige respeito absoluto pelas normas legais em vigor sobre a constituição de turmas com alunos com NEE;
- denuncia e rejeita a utilização dos docentes de EE e do apoio educativo para substituições de docentes em falta, com grave prejuízo para os alunos que apoiam;
- exige que seja garantida às escolas/agrupamentos a autonomia necessária para que possam substituir, de imediato, docentes de EE, respeitando as regras dos concursos, sempre que se verifique a ausência prolongada desses docentes;
- exige, de imediato, que sejam tornados públicos os previsíveis impactos das medidas aprovadas no Orçamento de Estado para 2011 de forma a que, atempadamente, se evitem rupturas que poriam em causa uma resposta positiva e adequada às necessidades das escolas para que sejam efectivamente inclusivas.
Lisboa, 30 de Novembro de 2010
O Secretariado Nacional
Fonte: FENPROF