Escola para Todos, por Filipa Moreno

julho 23, 2009

“Todos diferentes, todos iguais” é o princípio que justifica o projecto da Escola Inclusiva. As crianças deficientes têm um lugar entre os outros alunos, porque para os mais pequenos a diferença está presente em todos nós – apenas se nota mais nuns do que noutros.

Ao entrar no recreio o cenário que surge é o esperado espaço de brincadeira da escola primária. O som das vozes alegres, risos e canções. Uma partida de futebol, jogos estratégicos, jogos de escondidas, lengalengas acompanhadas de palmas. Só com um segundo olhar, mais atento, as diferenças saltam à vista: nos grupos de crianças mergulhadas no mundo do faz-de-conta das brincadeiras, uma delas tem trissomia 21 e outra perturbações do espectro do autismo.

É assim no Externato O Nicho em S. João do Estoril, onde 20 por cento dos alunos têm Necessidades Educativas Especiais (NEE). Surdez, paralisia cerebral, trissomia 21, perturbações do espectro do autismo, síndrome de Nail Patella, hiperactividade, défice de atenção – durante os longos anos de experiência em inclusão deste colégio foram e são hoje incluídas crianças com estas e outras patologias. Os colegas recebem-nas e aceitam as suas diferenças muito naturalmente.

O ideal da inclusão tem crescido no sistema educativo português nos últimos anos. A inserção de alunos com Necessidades Educativas Especiais em turmas de funcionamento regular é o que se procura para o futuro, na tentativa de alcançar o modelo de Escolas Inclusivas, que visam a igualdade de oportunidades no acesso e sucesso escolar.

A Escola Inclusiva, democrática na sua essência, pretende ser o espaço onde todas as crianças podem usufruir de uma educação adaptada às suas especificidades, com vista à melhor preparação académica. Privilegia também a componente cívica através da inclusão das diferenças de cada aluno e é um meio de socialização que fomenta a consciência da diversidade.

A flexibilidade deste modelo de ensino implica a adaptação das estratégias pedagógicas às diferenças mais acentuadas, ou seja, às Necessidades Educativas Especiais.

Nova legislação só contempla necessidades permanentes

O conceito de Necessidades Educativas Especiais tem tido várias acepções, não havendo consenso quanto à sua definição. A Declaração de Salamanca, documento elaborado pela Organização das Nações Unidas em 1994, considera como alvo principal deste ensino “todas as crianças que apresentem, em algum momento da sua vida, dificuldades acrescidas no processo de aprendizagem e desenvolvimento”, como esclarece Clarisse Nunes, docente da Escola Superior de Educação e Lisboa na área de NEE.

Alguns estudiosos desta matéria clarificam o conceito, como é o caso de Rune Simeonsson, professor e especialista em NEE e colaborador da Organização Mundial de Saúde. Simeonsson distingue dois grupos – as NEE de alta-intensidade e baixa-frequência, como as deficiências resultantes de alterações funcionais e estruturais do próprio organismo, que são permanentes; e NEE de baixa-intensidade e alta-frequência, decorrentes de problemas temporários e contextuais. A este grupo pertencem dificuldades de aprendizagem, distúrbios de comportamento, de atenção e emocionais.

Embora não indique uma definição clara de Necessidades Educativas Especiais a nova legislação adopta a categorização de Simeonsson, apontando como alvo as crianças cujas necessidades específicas revelam um carácter permanente. Este aspecto tem resultado no descontentamento de muitos profissionais da educação que lidam com alunos com NEE, argumentando que o conceito imposto pelo Decreto-Lei n.º 3/2008 é demasiado restrito, uma vez que na legislação anterior estavam também contempladas as Necessidades Educativas Especiais de carácter temporário.

Para estes casos de dificuldades menos profundas, o DL n.º 3/2008 remete às escolas a criação de respostas a tais necessidades, o que pode gerar um problema ao nível dos recursos, pois “a escola tem que lhes dar resposta não com serviços de educação especial mas com serviços de apoio socioeconómico, que pode não ter”, aponta Clarisse Nunes.

A inclusão de crianças com deficiências permite-lhes ter contacto com o padrão normal de socialização e com os seus pares. Como explica Patrícia de Sousa, psicóloga de desenvolvimento infantil, “é na primeira infância que se fazem as maiores aquisições e em que a maturação em termos neurológicos está aberta a que haja essa aprendizagem, através da imitação, observação, socialização. É importante que isso seja feito num ambiente estruturado e convencional”.

A principal distinção entre as escolas de ensino regular que promovem a inclusão e os estabelecimentos de ensino especial é esta possibilidade de proporcionar no meio escolar uma representação da sociedade, preparando os alunos para a vida futura. Patrícia de Sousa aponta que “a criança até já pode estar a ter as adaptações de que precisa ao nível da sua deficiência”, como nos estabelecimentos de ensino especial, “mas não está em convivência com o padrão normal e sim com comportamentos menos convencionais”.

No ensino privado só existe apoio no pré-escolar

No ensino privado, o destacamento de professores e técnicos para o apoio a alunos com dificuldades não existe no 1º Ciclo, mas apenas no pré-escolar. No Externato O Nicho, apenas os dois alunos com deficiências do pré-escolar têm acompanhamento disponibilizado pelo Ministério da Educação. No 1º Ciclo, cabe aos pais dos alunos com NEE a contratação de apoios especializados, ou seja, professores de ensino especial e técnicos que trabalham individualmente com os alunos.

Será o caso de Guilherme, que tem 3 anos e paralisia cerebral. Apesar de estar a ser acompanhado por uma educadora do ensino especial, perderá este apoio quando entrar para a primária. Cláudia Rocha, mãe de Guilherme, conta que “é uma criança que apresenta um bom desenvolvimento de acordo com a patologia dele, mas que irá sempre necessitar de apoio do ensino especial, mais atenção e dedicação, além de uma terapeuta da fala, de uma terapeuta ocupacional, entre outras coisas mais.” Explica também que será “muito positiva a inclusão dele no meio de outras crianças da mesma idade que não têm problemas. Isso irá ajudá-lo a adquirir e estimular determinadas competências que serão importantes no seu dia-a-dia.

A partir do próximo ano, Guilherme frequentará O Nicho, onde também estuda a sua irmã Madalena, de 8 anos. Na turma de Madalena, do 3º ano, existem dois casos de alunos com NEE cuja inclusão foi bem sucedida. Cláudia Rocha assegura que esses colegas da filha “conseguem estar na sala de aula, não provocam distúrbios nem penalizam as outras crianças. As vivências deles são muito idênticas às das crianças da mesma idade.” Apesar destes casos, Cláudia refere que tem conhecimento de situações cuja inclusão no ensino estatal não resulta, devido à falta de apoios ou à gravidade das patologias das crianças.

Para Ana Gomes, directora d’O Nicho, as despesas económicas que estes apoios requerem são muito elevadas – desde professores de apoio e psicólogos a natações, botas e coletes ortopédicos, internamentos. “Para além do colégio, estas crianças podem custar entre €1500 e €2000 por mês aos pais. Podem não precisar de tudo isto, mas depois também não têm os mesmos resultados.”

Acompanhar casos de necessidades especiais requer o trabalho de parceria entre uma equipa multidisciplinar, para a melhor adequação das estratégias educativas às especificidades do aluno. Tal como no ensino estatal, participam neste processo várias entidades, desde os pais do aluno aos professores, passando por psicólogos e terapeutas. É um método demorado e minucioso que procura a definição do Plano Educativo Individual, o currículo personalizado da criança deficiente, alternativo ao traçado para a turma.

Apesar de reconhecer que se trata de um trabalho exaustivo, Ana Gomes afirma que “é muito compensador” e que “o que eles nos dão em troca justifica tudo isto. É espectacular.”

Crianças aceitam naturalmente a inclusão

O processo de inclusão pode assumir adaptações diferentes em cada caso. A Escola Inclusiva pressupõe que as crianças com deficiências estejam inseridas numa turma de funcionamento regular e aí tenham os ajustamentos necessários às suas capacidades.

Por vezes, estas adequações levam à criação de modalidades específicas de educação, como unidades de ensino estruturado para perturbações do espectro do autismo e unidades de apoio especializado para a educação de alunos com multideficiência e surdocegueira congénita. “Os alunos são retirados da sala”, conta Miquelina Lopes, professora de educação especial, “vão para as unidades, que são dentro das escolas”. “Fazem socialização com as outras crianças no recreio e em algumas actividades na sala.”

A especialista em NEE, Clarisse Nunes, reconhece que “estas unidades podem ser consideradas guetos, uma resposta à não-inclusão. As crianças podem estar no espaço da escola mas não haver interacção com os colegas.” Diz ainda que “é uma responsabilidade dos profissionais que estão a trabalhar com a criança, no sentido de promover oportunidades para que possam interagir e aprender uns com os outros”. Quando isto não acontece, “teremos um espaço social fechado e a inclusão não resulta”.

Para os casos de deficiências sensoriais a legislação estabelece a criação de escolas de referência para a educação bilingue de alunos surdos e para a educação de alunos cegos e com baixa visão.

As escolas beneficiam do apoio dos Centros de Recursos para a Inclusão (CRI), que eram anteriormente os estabelecimentos de ensino especial. Segundo dados do Ministério da Educação, a conversão dessas instituições para CRI acontecerá até 2013, transitando os alunos que os frequentavam para as escolas de ensino regular. O acompanhamento das crianças passa a ser dado por técnicos e profissionais dos centros de recursos, que se deslocam às escolas para prestar o apoio solicitado.

Filipa Cavalinhos, técnica de Psicologia da CERCICA (Cooperativa para a Educação e Reabilitação de Crianças Inadaptadas de Cascais), explica que o trabalho destes centros passa por tecer “estratégias aplicáveis na sala de sala, ajudando os professores a encontrar materiais para responder às necessidades daqueles alunos.” Indica a necessidade da existência de uma equipa de ajuda “como é o nosso caso, que damos sessões individuais aos alunos mas trabalhamos na escola, sempre na tentativa de dar orientações para o contexto da sala de aula, para que os professores se sintam capazes de mobilizar estes métodos e seleccionar a melhor forma de trabalhar com cada aluno”.

Para as crianças, a inclusão é simples e livre de burocracias. Nestas idades a ingenuidade é verdadeira e as diferenças não são significantes. “Os miúdos têm a capacidade extraordinária de olhar para a diferença”, conta Ana Gomes, directora d’O Nicho. “Quando recebemos uma criança diferente só lhes dizemos que vão ter um amigo novo. Quando a criança chega eles olham e se tiverem dúvidas perguntam. É uma integração sempre pacífica”, acrescenta. Muito naturalmente, “são protectores se acharem que o devem ser, ajudam se sentirem que devem ajudar e não permitem se virem que não devem permitir”, recorda a directora. Para os alunos que convivem com crianças deficientes “há uma grande implicação e é positiva: acabam por aprender muito mais, não nos conteúdos académicos mas na formação da personalidade.”

Os Números

O ano lectivo 2008/2009 foi o primeiro a reger-se no quadro da nova legislação para a educação especial. Ainda numa fase inicial do projecto, o Ministério da Educação deu início em Janeiro deste ano a uma avaliação da implementação do DL n.º 3/2008, para a qual disponibilizou 215 milhões de euros.

Até ao momento, os resultados relativos a esta mudança no ensino especial constam do Relatório da Inspecção-Geral da Educação (Março de 2009) relativo à organização deste ano lectivo e apontam o aumento do número de docentes de educação especial de 3,3 para 4,3 por cento. “Permite um apoio mais efectivo aos alunos com NEE”, segundo o Ministério da Educação. De acordo com o relatório, foram identificados 3587 alunos (3,5 por cento) portadores de NEE no 1º Ciclo do Ensino Básico (estatal), entre os quais 3321 (92,6 por cento) obtiveram apoio. Avança ainda que as patologias mais identificadas na maioria dos casos referenciados consistem em limitações mentais a nível cognitivo, emocional e da linguagem.

Contudo, os dados disponibilizados não explicam se existe qualidade nas respostas às necessidades especiais dos alunos, isto é, no apoio aos 92,6 por cento de crianças." (Filipa Moreno | Revista N)

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